A política da família em ‘Como Nossos Pais’

“Como Nossos Pais”, de Laís Bodanzky, não usa à toa o título da música de Belchior. A canção, aliás, aparece num momento muito emocionante, tocada ao piano por uma das personagens. A música, se sabe, fala que “Ainda vivemos e pensamos/Como nossos pais”. Naquela época, o grande Belchior já sentira que a tradição, a praga da memória e os hábitos consolidados permaneciam mais do que podia admitir uma geração que quisera fazer a revolução e, em falta desta, abraçara a contracultura.

Dessa permanência de hábitos fala um pouco “Como Nossos Pais”, o filme, dirigido por Laís e escrito por ela e Luiz Bolognesi. Rosa (Maria Ribeiro) é a mãe de família que carrega o mundo nas costas. Dedica-se a uma profissão de que não gosta, ganha dinheiro, cuida da casa, dos filhos e dos demais problemas que se abaterão sobre ela.

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O marido (Paulo Vilhena) é um ótimo cara, idealista e que vive em viagens dedicadas à causa ecológica. Como precisa cuidar do planeta, não encontra tempo para se dedicar à própria casa e à mulher.

Em entrevista, Laís disse que, para seu projeto, a família tinha de ser de esquerda e progressista. Para vermos como os preconceitos e limitações se infiltram até mesmo onde menos se espera. A mãe de Rosa é interpretada por uma iluminada Clarisse Abujamra. Num almoço de família, ela tem duas revelações a fazer à filha, que irão alterar consideravelmente o já precário equilíbrio familiar de Rosa.

Em sua estrutura aparentemente simples, “Como Nossos Pais” toca em questões fundamentais. Uma delas – talvez a central – seja esta a que me referi, o da persistência de hábitos patriarcais mesmo depois das chamadas revoluções culturais dos anos 1960 e 1970.

Mas também reflete sobre os problemas colocados pela paternidade e pelos desafios da mulher moderna, assediada por compromissos de todos os lados – na casa, no emprego, junto aos filhos, etc. É muita coisa. E mulheres que se orgulham de ser multifuncionais não parecem perceber o risco que correm.

O filme toca também na questão do desejo, e não apenas sexual. Quem conhece psicanálise sabe que ninguém deve trair seus desejos, a não ser com um alto custo psíquico. No entanto, nada mais difícil do que reconhecer seus próprios desejos e, uma vez reconhecidos, enfrentar as consequências para realizá-los.

Durante o debate se falou muito em “empoderamento” (que palavra, meu Deus…) feminino. Não sei, desconfio que se trata menos de uma questão de poder e mais de reconfiguração de relacionamentos. Mas, como disse sabiamente Paulo Vilhena, o momento, para os homens, é de silêncio e escuta do que as mulheres têm a dizer. E as mulheres falam muito – e bem – neste filme que ainda precisará ser bastante discutido.

Em termos de festival, acho que “Como Nossos Pais” já se apresenta como candidato forte a alguns prêmios. É dirigido de maneira segura e firme. O roteiro é de artesanato raro. Salvo engano, Maria Ribeiro tem em Rosa o seu grande papel no cinema até agora. E Clarisse Abujamra é nada menos que brilhante. Mas ainda tem muito chão pela frente e outros concorrentes virão.

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