Renato Borghi aposta em ‘Fim de Jogo’ como um manifesto doméstico

“Consegui! Consegui!” A euforia do então jovem ator ao entrar pela porta do apartamento era acompanhada de uma boa notícia. Renato Borghi conseguira entrar no elenco do espetáculo “Chá e Simpatia”, com direção de Sérgio Cardoso, que estreou em 1958, no Rio. “Foi meu primeiro papel profissional. Eu tinha 20 anos.” Depois, a vinda para São Paulo tratava de reservar boas surpresas. No ano seguinte, Borghi contracenava com Etty Fraser em “A Incubadeira”. A lembrança da atriz confirma a íntima relação e o compromisso do ator com a palavra na cena. “Ele e Zé Celso (Martinez Corrêa) passaram uma tarde comigo para decorar o texto. O Renato foi sempre muito doce para trabalhar.” Fora dos palcos, Etty conta que ainda havia o trabalho árduo de levantar o que seria o princípio do Teatro Oficina. “Com ele, criamos o Livro de Ouro, para receber doações”, recorda. “A gente estava sempre pensando em formas de juntar recursos.”

Dali para frente, o ator mergulhou em grandes figuras, como o debochado Abelardo I em “O Rei da Vela”, em 1967. “Naquela época, os atores tinham duas linhas para seguir”, aponta Zé Celso. “O estilo burguês do Teatro Brasileiro de Comédia e o realismo do Teatro de Arena. Renato trouxe a vitalidade da chanchada, com o clima de picadeiro e a força dos comunicadores de televisão e rádio, como o próprio Abelardo Barbosa, o Chacrinha.” O espetáculo criado com base na obra de Oswald de Andrade é o marco do movimento tropicalista. “A montagem conectou todos os artistas daquela geração, da música, da arquitetura, do cinema e do teatro”, ressalta Zé Celso. “Renato misturava vários estilos de artistas como Oscarito e Grande Otelo. É um dos maiores atores do Brasil.”

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Borghi diz que o espetáculo surpreendia. “O diretor Procópio Ferreira assistiu à peça, mas ficou com medo de que seu público se sentisse agredido.” O ator também viveu o Galileu de Brecht em 1968. “Fiz um personagem de quase 50 anos aos 30 anos e com uma barriga postiça”, ele ri. Ele também lutou no ringue de “Na Selva das Cidades”. “Que peça violenta.” A despedida do Teatro Oficina ocorreu em 1972, com “As Três Irmãs”.

Ainda assim, a “pista” – como é chamado o palco do Teatro Oficina – nunca deixou de ser a casa de Borghi, motivo pelo qual ele procurou o diretor Zé Celso para montar a peça “Fim de Jogo” no Oficina. “Não conseguimos nenhum espaço para encenar, muitos teatros nem sequer nos responderam”, conta o ator.

“Pensamos em montar lá no Oficina e contamos ao Zé que também havia o desejo de fazer na casa do Renato”, conta a diretora Isabel Teixeira. “É o máximo!”, diz Zé Celso, que reforçou a ideia de que a montagem fosse feita no apartamento de Borghi. “O Oficina começou com Teatro a Domicílio”, lembra o diretor. Logo após “A Incubadeira”, o grupo do Oficina montou um conjunto de três peças curtas do dramaturgo Carlos Queiroz Telles e apresentou nas casas. “O Teatro de Arena também começou assim”, afirma Borghi. “O fim está no começo. O começo está no fim e, no entanto, continua-se”, Isabel pinça um trecho da peça. “Então o que é começo e o que é fim?”

Assim, tudo cooperava para o bem do “teatrinho de Adriano Borghi”, brinca o ator, referindo-se ao pai que, inclusive, tem espaço na encenação. “O texto tem quatro personagens”, diz Isabel sobre Nell e Nagg, pais de Hamm. Em vez de convidar mais dois atores, o ambiente doméstico pareceu sugerir um caminho, conta Seixas. “Na encenação, a ideia foi se adequar aos elementos da casa. “No caso dos pais de Hamm, nós os invocamos por meio de retratos.”

A casa rural de Beckett. Outro impulso que confirmou essa decisão surgiu de uma dica do tradutor Fábio Rigatto para Isabel. “Ele me disse que, nos manuscritos e nos rascunhos da peça, Beckett trazia dois personagens apenas.” Ela conta que, em uma das cenas, o que seria Hamm fala para Clov: “Vá chamar minha mãe”. Ao que o outro responde: “Você não prefere a sua mulher?”. E, sob a réplica negativa, Clov entra na cozinha e volta travestido de mãe. “Beckett estava começando a desenvolver essa duplicação e aí ele encerra o manuscrito. Em seguida, ele concebe as quatro figuras separadamente”, explica.

Para conferir de perto, Isabel visitou Reading, cidade da Inglaterra que concentra o maior acervo do dramaturgo no mundo, mantido pelo biógrafo do autor, James Knowlson. “Quando cheguei, eles estavam comemorando a compra dos cadernos de Murphy.” Os manuscritos do romance foram arrematados em 2013 por US$ 1,5 milhão.

Mas, antes de chegar, o caminho reservava uma surpresa. “O mapa indicava um endereço que não o da universidade. Segui meio desconfiada e descobri: o acervo de Beckett fica dentro de um museu rural da Grã-Bretanha!” Em meio a exposições de arado e tratores, Isabel cruzou o caminho com agrônomos e pesquisadores da área até chegar aos escritos do dramaturgo. “O acervo do Beckett está ali!”, repete. “Eu sempre acho que é piada dele.”

E a correspondência do bunker apocalíptico de Hamm e Clov com o apartamento na Alameda Santos perturbou inicialmente o ator. Após as cirurgias, Borghi demandava recuperação. “Os médicos diziam que ele ia ficar paralítico”, conta Seixas. Tudo começou em 2014, ainda durante a temporada de Azul Resplendor. “Ele começou a cair no palco.”

Logo após os exames, a coluna foi preenchida por parafusos de titânio. “A dor não passa nunca. Tenho dores musculares praticamente o tempo todo”, explica o ator. “Mas agora estou rangendo, espero que só um azeite resolva”, ri. De qualquer jeito, a força do personagem causou preocupação. “Bateu uma crise. Chorei um pouco, deu um desespero, mas depois passou”, diz Borghi. “Se, por um lado, não sou Hamm, às vezes me sinto como ele. Não moro em um bunker, mas, às vezes, me sinto em um.”

Prestes a completar 79 anos, em março, Borghi olha lá para trás, quando viu a peça de Beckett, e diz que os tempos mudaram. “Depois que você viveu tanto, as coisas já não são as mesmas. Eu tinha 20 anos e hoje entendo o que ele queria dizer. O começo está no fim.”

FIM DE JOGO
Itaú Cultural. Av. Paulista, 149, telefone (011) 2168-1777. Retirar ingressos a partir das 19h. 5ª a dom., às 20 horas. Grátis. Estreia 5ª (14/1). Até 28/2

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