A modéstia é uma das qualidades de Luis Fernando Verissimo (foto), um dos escritores mais admirados do País. Mas uma recente descoberta o obrigou a mudar de atitude: ao assistir ao mais recente filme de Woody Allen, Café Society, Verissimo surpreendeu-se quando um dos personagens disse algo assim: “O ideal é viver cada dia como se fosse o último – um dia, você acerta”. “Eu disse ou escrevi essa frase há algum tempo. Quem diria, Woody Allen me plagiando”, diverte-se ele, uma das raras unanimidades positivas do Brasil.
Ninguém duvida de sua capacidade criativa, mas, àqueles que só acreditam vendo, basta folhear Verissimas (Objetiva), coleção de cerca de 800 verbetes organizados em ordem alfabética e que trazem comparações, máximas, mínimas e metáforas do mestre do humor sintético. O lançamento da coletânea marca a comemoração dos 80 anos de Verissimo, que serão festejados na segunda-feira, 26. A cereja do bolo será a chegada, em outubro, de As Gêmeas de Moscou, obra que marca sua estreia como autor para o público infantil.
Verissimas tem uma origem curiosa, pois foi organizado pelo publicitário e jornalista Marcelo Dunlop a partir de seu arquivo pessoal. Tudo começou em 1989, quando ele estava com 10 anos e descobriu, ao ler um texto de Verissimo, que mesmo a morte poderia ser engraçada. Depois de muito gargalhar, ele recortou a crônica e iniciou uma coleção regularmente alimentada nas duas últimas décadas.
“Não se faz uma piada dessas impunemente com uma criança”, escreve Dunlop no prefácio de Verissimas, que será lançado na Livraria Cultura do Conjunto Nacional no dia 4 de outubro, a partir das 19 horas. “Um dos principais objetivos dessa antologia foi apurar se aquelas tantas frases espalhadas pela internet eram de fato dele.”
Verissimo até se acostumou com a enxurrada de material que circula na rede internacional com a sua assinatura. Sempre que pode, nega a autoria, mas, às vezes, cria uma resistência. É o caso de um texto intitulado Quase. “É bem escrito e tem um tom de autoajuda. Logo, descobri que foi uma garota quem escreveu. O fato é que o texto correu o mundo e, certa vez, quando eu estava no Salão do Livro em Paris, uma senhora disse que tinha traduzido vários autores brasileiros como Clarice, Drummond e, no meu caso, o Quase, que virou Presque”, conta o autor.
“Fico sem graça de dizer que não é meu. Em outra oportunidade, uma senhora veio me dizer que não gostava tanto dos meus textos, exceto do Quase, que era maravilhoso. O que posso dizer? Melhor não decepcionar. E, quando vou a escolas, onde os alunos encenam um texto que, na verdade, não é meu?”, continua.
Uma das explicações para justificar tamanha reverência é o fato de Verissimo conseguir ser, em seus textos, popular e não popularesco. Qual a receita? “Não tenho”, jura. “Acredito que, antes de mais nada, é ter clareza na escrita. E, como a crônica normalmente não é um texto grande, torna-se acessível a qualquer público.” Verissimo não aceita ser chamado de humorista. “O tipo de graça que faço é para provocar um sorriso, não uma gargalhada. Não tenho essa pretensão.”
Cronista, cartunista, ficcionista, saxofonista, gourmet e torcedor fanático do Internacional, Luis Fernando Verissimo é autor de quase 60 livros que já venderam cinco milhões de exemplares (entre eles, os best-sellers O Analista de Bagé e A Comédia da Vida Privada) e de personagens emblemáticos (a Velhinha de Taubaté, que criticava a ditadura, o detetive Ed Mort, as Cobras).
Filho do também autor Erico Verissimo, ele só começou a escrever aos 32 anos, depois de ter passado por várias escolas de arte e desenho, inacabadas; de ter tentado o comércio “só para reforçar o mau jeito da família”; e de ter passado por uma rápida carreira jornalística, de revisor e colunista de jazz a cronista principal do jornal gaúcho Zero Hora. Desde a década de 1980, escreve regularmente no Estado, fonte de inúmeros verbetes que compõem Verissimas.
Apesar de consagrado, Verissimo ainda não se considera capaz de escrever uma “literatura com L”, como costuma dizer. “Esse tipo de literatura depende de uma ambição, de uma necessidade de escrever, e isso eu nunca tive. Quando comecei, tinha apenas a necessidade de ter uma carreira”, conta ele, que concorda plenamente com o velho amigo Zuenir Ventura, para quem, melhor que escrever, é ter escrito. “Quando produzimos um texto, estamos envolvidos com a técnica, o que impossibilita saborear essa escrita. O prazer parece que vem depois, especialmente quando agrada a outras pessoas. Gosto de ler coisas que escrevi há anos e ainda acho bem boladas. Por outro lado, eu me afasto das bobagens.”
Verissimo também evita a leitura dos comentários ferinos que seus textos, especialmente os políticos, recebem. “Nunca escondi minha simpatia pela esquerda e pelo PT original. Mas, hoje, mesmo criticando a forma como o PT se afastou da esquerda, sou atacado, mas não sei de que forma, pois, quando percebo se tratar de uma lista de ofensas, nem termino de ler.”
O escritor gaúcho faz observações também sobre a forma de falar do presidente Michel Temer. “O português é uma língua danada. Falar corretamente é algo tão raro que chama atenção, como no caso do Temer. Colocar o pronome no lugar certo é elitismo.”
Trama sobre gêmeas é a primeira obra infantil de Verissimo
Desde o nascimento da primeira neta, Lucinda, há alguns anos, Luis Fernando Verissimo passou a dedicar mais espaço para retratar o mundo infantil. O maravilhamento logo o convenceu a estrear na literatura para jovens com As Gêmeas de Moscou, que a Companhia das Letrinhas lança em outubro, próximo do dia 12.
Com ilustrações de Rogério Coelho, a obra acompanha Olga e Tatiana, irmãs gêmeas e bailarinas. Mesmo parecidas, as duas se diferenciam pelos atos – Olga se destacava mais que Tatiana no balé, mas era arrogante e tratava mal a irmã, que, mesmo assim, com seu jeito doce, sempre a apoiava. Certa noite, porém, quando a meia-calça de Olga cai durante uma apresentação, ela acaba recebendo uma valiosa lição.
Verissimo falou sobre o prazer de ser bem recebido pelo público infantojuvenil. “Encontro muitos adolescentes que dizem ter se iniciado na leitura com livros meus”, comentou. “Isso é gratificante. De alguma forma, eu me sinto participante dessa luta, desse bom combate que é tentar criar um público leitor.”
Verissimo gostou particularmente de saber que o organizador dos verbetes de Verissima, o jornalista e publicitário Marcelo Dunlop, aproximou-se de suas crônicas justamente sobre uma que tratava da morte. “Isso é raro, pois, normalmente jovens buscam ler sobre seus heróis ou outros assuntos mais próximos.”
A intimidade com as palavras lhe permite esvaziá-las com graça
Penso em Luis Fernando Verissimo como alguém que leva às últimas a recomendação de José Carlos Oliveira: “Palavra é sangue. Não se derrama.”
A frase do falecido cronista capixaba vem a propósito do escritor, mas também do desenhista de traço despojado, e mais, do próprio Verissimo, artista capaz, como poucos, de ir ao ponto com um mínimo de meios. Para quem espera jorros verbais, entrevistá-lo é experiência angustiante – mas posso atestar: o que ele diz, de tão desossado, já é texto pronto, sem carência de lipoaspiração vocabular.
Verissimo por certo faria este texto usando menos palavras para dizer mais e melhor. Aí está uma de suas marcas mais poderosas, explicação para a força de uma obra que, embora feita no sufoco dos prazos jornalísticos, tantas vezes é capaz de atravessar o tempo sem rugas nem sépia. A musa, disse ele, é o deadline do jornal. E o capricho tanto vale para uma historinha bem-humorada como para o comentário grave.
Faça a prova: tente cortar, no que o Verissimo escreve ou desenha, uma só vírgula, um só traço que esteja sobrando. Ou, ao contrário, acrescentar o que lhe pareça faltante. Parada torta. A menor coisa, ali, está em condições de justificar presença, provando ser indispensável. Quanto à substância, até o pouco rende muito. Nosso maior cronista, no ramo há quase meio século, é como um cozinheiro que, dispondo apenas de água e sal, faz uma bela bacalhoada.
Que ninguém se deixe enganar pela aparente facilidade do texto do Verissimo. Trata-se de um mestre naquilo que o poeta Hélio Pellegrino chamou de “a difícil arte de escrever fácil”. E, claro, não chegou a tanto sem antes dominar as virtualidades da língua. Só assim pode um autor tomar liberdades para a criação literária.
“A Gramática precisa apanhar todos os dias para saber quem é que manda”, escreveu Verissimo em O Gigolô das Palavras. Mas certamente não é coisa para amadores. “Um escritor que passasse a respeitar a intimidade gramatical das suas palavras seria tão ineficiente quanto um gigolô que se apaixonasse pelo seu plantel”, compara ele. “Acabaria tratando-as com a deferência de um namorado ou com a tediosa formalidade de um marido. A palavra seria sua patroa! Com que cuidados, com que temores e obséquios ele consentiria em sair com elas em público, alvo da impiedosa atenção de lexicógrafos, etimologistas e colegas. Acabaria impotente, incapaz de uma conjunção.”
A intimidade com as palavras, por outro lado, é que permite a Verissimo – essa “fábrica de fazer humor”, no dizer do cartunista Jaguar, mas também reflexão – aventurar-se, por exemplo, com enorme graça, na deliciosa brincadeira de esvaziá-las do sentido original, substituindo-o por algum mais adequado. Como quem procurasse uma ostra melhor para determinada concha.
“Falácia”, por exemplo, a seu ver leva mais jeito de flor: um canteiro de falácias.
Proponho a você entrar na brincadeira e batalhar na garimpagem de significado mais exato para o superlativo “veríssimo”. Que tal um substantivo que dê a ideia de craque da palavra?