A apreensão de metanfetamina no Aeroporto de Cumbica, em Guarulhos, uma das principais portas de entrada da droga no País, saltou 254% no primeiro semestre deste ano. Até junho, segundo a Polícia Federal (PF), os policiais haviam encontrado 78,6 quilos da substância, ante 22,2 quilos no mesmo período de 2015. O valor também já ultrapassa todo o ano de 2015, quando foram apreendidos 57,2 quilos.
A metanfetamina brasileira é diferente da que ficou conhecida na série americana Breaking Bad. Ao contrário dos EUA, onde a substância é apresentada no formato de cristais e pode ser fumada ou aspirada, aqui ela é vendida em comprimidos.
Em maio deste ano, a Receita Federal fez a maior apreensão de metanfetamina achada com um único passageiro no aeroporto. A equipe de fiscalização de bagagem da alfândega de Guarulhos encontrou 11 quilos da droga, escondidos em fundo falso e em duas mochilas trazidas por um brasileiro vindo da Europa. Foi a segunda grande apreensão no ano em Cumbica – em abril, um traficante foi pego com 8 quilos no aeroporto.
“Percebemos até que já existe um desvio da rota em razão das apreensões. Temos informações de que a droga tem sido apreendida no Recife e em Porto Alegre”, disse ao Estado o delegado-chefe da delegacia especial da PF em Guarulhos, Marcelo Ivo de Carvalho.
De acordo com ele, a maior parte da droga vem do exterior. “Às vezes, uma mesma mula (que carrega as drogas) faz duas operações: envia a cocaína para o exterior e, na volta, traz uma substância sintética para o Brasil. É uma forma de ganhar mais dinheiro”, explicou o delegado. Em um dos flagrantes, segundo o policial, a “mula” recebeu R$ 50 mil pelo serviço.
O Brasil também é produtor, em menor escala, do entorpecente. A metanfetamina, segundo especialistas, é uma das drogas mais fáceis de serem sintetizadas pelos bandidos. “Dá para fazer em qualquer laboratório clandestino. Mas, ao mesmo tempo, a molécula acaba sendo mais nociva, aumentando o risco de desencadear transtornos de pânico e ansiedade”, diz a psicóloga e pesquisadora do Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) Clarice Madruga.
A pesquisadora afirma que, hoje, é praticamente impossível identificar o que são as drogas usadas no País sem ajuda de um laboratório. “São todas vendidas como se fossem LSD ou ecstasy, que já viraram nome genérico para um grupo quase infinito de drogas.”
Clarice alerta que os usuários as consomem sem saber exatamente o que estão tomando. As versões mais disponíveis e baratas, diz ela, são quase invariavelmente mais nocivas. “A maioria dessas drogas tem, além do efeito psicodélico procurado, um efeito estimulante muito forte. Requerem muito do cérebro e trazem mais sequelas a curto e a longo prazo. Podem afetar demasiadamente a memória e aumentar as chances de desencadear transtornos de ansiedade e depressão permanentes.”
Tradicionais. No Estado, a maior quantidade de apreensões feitas pelos federais está concentrada nas drogas sintéticas tradicionais. Só no ano passado, a PF apreendeu 381,5 mil comprimidos de ecstasy, 248 frascos de lança-perfume e 4,3 mil selos de LSD. Mas o avanço dessas substâncias “pirateadas” ou das drogas mais baratas que simulam as tradicionais preocupa a PF. Ela já apreendeu em Cumbica porções de 25I-NBOMe, em diferentes variações, 25C-NBOME e etilona.
Civil. O diretor do Departamento de Narcóticos (Denarc) da Polícia Civil de São Paulo, Ruy Ferraz Fontes, diz que substâncias como o NBOMe têm surgido em pequena escala. “Mas o público é outro. Os traficantes estão atingindo um mercado que não existia. Muitas vezes desenvolvem essas fórmulas no exterior, e os traficantes tentam copiar aqui”, disse.
Ele destaca que esse tipo de substância, diferentemente das drogas convencionais, é vendida pela internet. “Estamos monitorando esse comércio há pelo menos dois meses”, afirmou o diretor do Denarc.
Usuários relatam confusão mental e alucinação
As novas drogas detectadas pela PF têm em comum uma característica: seus usuários não sabem a exata dimensão dos danos que provocam à saúde. O que explica esse fenômeno, além da presença recente delas no País, é a ausência de estudos científicos sobre seus efeitos.
A cozinheira Claudia (nome fictício), de 24 anos, já experimentou de tudo. Começou a provar substâncias diferentes aos 19 e não parou mais. A lista de siglas inclui LSD, DMT, 2c-B, 2c-i, NBOMe, etilona. “Já usei um pouco de tudo, menos cocaína, que não acho legal.”
A jovem conta que hoje usa apenas drogas importadas por amigos para evitar o contato com as novas substâncias “alternativas”. Quando experimentou o NBOMe, por exemplo, percebeu que se tratava de uma variação “falsa” do LSD. “Tomei na faculdade, e os efeitos não são nada parecidos com LSD. Causa uma confusão mental, o coração acelera e fica um rastro azul em tudo. Já ouvi até relatos de pessoas que passaram mal.”
Claudia diz que colegas compram a droga pela internet por R$ 3 cada papel e revendem por R$ 30. “Eles compram pelo correio, vem da Europa, por cartas embaladas em sachês de chá. Vem perfeito na caixa e, dentro de cada sachê, estão os papéis. Já vi dentro de CDs e até embalagem de bola.”
Com a etilona, ela diz que teve o mesmo problema. “Hoje em dia estão vendendo no lugar do MDMA. Mas os efeitos são muito diferentes. A etilona faz você ficar lá boiando, sem entender nada.” O uso contínuo do MDMA, segundo especialistas, pode provocar delírios e crises de pânico.
Hoje, depois de ter deixado a faculdade, Claudia diz que consome LSD e ecstasy. Médicos alertam que, embora não cause dependência química, há risco de o LSD provocar quadros de pânico, ansiedade e delírios no usuário.
Doce
O estudante de Psicologia Tiago (nome fictício), de 23 anos, conta que já foi usuário de NBOMe e outras substâncias. “Costuma ser vendido com o nome de doce, LSD. Sempre comprei de amigo, amigo de amigo ou traficante.”
Sua primeira experiência foi com maconha. Depois veio a curiosidade por outras substâncias. “Álcool, cigarro, cocaína, ecstasy. Mas fica difícil dizer quimicamente o que era, só sei que todas as balas que usei têm um efeito semelhante, que é diferente do doce (LSD).” Ele admite não saber exatamente se as substâncias que usou eram, de fato, o anunciado pelos traficantes. “Fomos todos na onda para experimentar.”
Entre os efeitos do NBOMe, Tiago destacou a “intensidade” dos sentimentos. Ele experimentou a droga pela primeira vez em um churrasco, com amigos. “Senti euforia e agitação muscular. Muito medo, pânico, alucinação, sempre alucinação.” A dosagem era sempre baixa. “São cartelas de 25 quadradinhos, de 1 cm por 1 cm. Quanto mais se compra, mais abaixa o preço. O preço varia de R$ 15 a R$ 40”, diz.
O jovem afirma que há pelo menos um ano e meio não faz uso de drogas. “Encontrei realidade nessas experiências e o autoconhecimento me bastou. E daí em diante nem há mais prazer em usá-las”, afirma o estudante.
PF identifica 59 novas drogas no País em 3 anos
A Polícia Federal (PF) identificou 59 novas drogas apreendidas no País nos últimos três anos. Algumas são entorpecentes consumidos há anos por usuários enganados por traficantes, que as vendem como se fossem drogas mais conhecidas, como o LSD e o ecstasy. Os danos causados por essas substâncias ainda não são totalmente conhecidos pela ciência. O Estado obteve os dados da PF por meio da Lei de Acesso à Informação.
Pequenos traficantes vendem essas drogas pela internet, muitas vezes em sites do exterior, ou em grupos de aplicativos como o WhatsApp e o Telegram. Nas baladas e em universidades elas são revendidas por preços que podem variar de R$ 5 a R$ 100 a dose. Mais raramente, são produzidas no País: segundo o levantamento, só em 2015, a PF destruiu 17 laboratórios de droga sintética, a maior parte deles (8) em Goiás.
O uso de novos componentes químicos para simular o efeito de drogas conhecidas é, segundo especialistas, uma forma usada por traficantes para baratear a produção de entorpecentes e ampliar os lucros. Um exemplo disso é o NBOMe. Ele é uma das substâncias que mais se popularizaram nos últimos anos e está no topo da lista de apreensões da PF, com 47 casos – considerando-se as diversas fórmulas como é comercializado.
A substância, alucinógena e estimulante, é vendida pelos criminosos como se fosse LSD, geralmente em pequenos tabletes ou cápsulas. Segundo a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que proibiu a droga em 2014, o NBOMe tem elevado risco de overdose e tem sido relacionado a “episódios de violência física e morte”. É a mesma droga ingerida por um estudante da Universidade de São Paulo (USP), em 2014, antes de morrer afogado na raia olímpica da universidade.
Relatos de usuários apontam para efeitos como confusão mental, coração acelerado e alucinações. A droga é comprada pela internet e vem embalada em sachês de chá, como disfarce. Em grande quantidade, pode custar R$ 3 a dose. Mas, entre os usuários, é vendida a R$ 30 – mais barato que o LSD, que pode chegar a R$ 60.
A etilona aparece em seguida na lista, presente em 41 apreensões feitas pela PF no período. Foi proibida pela Anvisa em 2015. Essa substância pode causar efeitos psicodélicos. É uma versão simplificada do MDMA (metilenodioximetanfetamina), droga que causa o efeito semelhante ao do ecstasy, mas mais estimulante e com mais efeitos negativos, como aceleração cardíaca e ansiedade.
Apreensões
Um dos principais destinos da droga sintética no País é Santa Catarina, onde as substâncias são vendidas em festas noturnas. O tráfico teve início há pelo menos dez anos, quando criminosos de classe média perceberam a abundância deste tipo de droga na Europa, principalmente na Holanda e na Espanha, ao mesmo tempo em que a cocaína custava caro no continente.
“Eles começaram a levar a cocaína para fora do País e trazer o sintético, com um lucro que chegava a 700%”, diz o delegado-chefe da Delegacia de Repressão a Entorpecentes da PF em Santa Catarina, Gustavo Trevizan. A droga, segundo ele, vinha escondida em pranchas de surfe, asa-delta e em mochilas.
Com o passar dos anos, a prática se popularizou e chegou aos traficantes dos morros. “Eles trazem o ecstasy ou a anfetamina para fazer a prensagem do comprimido. A mula recebe até R$ 30 mil para fazer o trajeto”, afirma o policial.
O surgimento de novas substâncias acompanha no Brasil uma tendência mundial, segundo o diretor médico do Centro de Assistência Toxicológica do Hospital das Clínicas da USP, Anthony Wong. “O EMCDDA (Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência) localizou, em 2013, 90 novas drogas, 107 em 2014 e outras 140 em 2015, a maioria sintética. O problema é que o efeito delas é imprevisível”, diz.
Para ele, a proliferação das substâncias tem relação direta com o custo. “Enquanto o LSD clássico pode custar até US$ 80, o NBOMe você acha por US$ 10 a US$ 15. E como o efeito é mais fraco que o LSD, o usuário toma mais dois ou três. É aí que tem convulsões, fica desacordado e pode até entrar em coma. Se não houver campanha de informação sobre os riscos, as próximas gerações terão problemas”, afirma Wong.