Desemprego impulsiona procura por ‘bicos’ pelo País

Amanda de Souza dava aulas de inglês; Bruna Ribeiro trabalhava numa empresa farmacêutica; William Santos era funcionário de um hospital. Nos últimos meses, porém, a rotina deles mudou. Amanda deixou a sala de aula e passou a vender lingerie, Tupperware e suplementos alimentares; Bruna largou o escritório e começou a costurar toalhas e fazer pães de mel; William perdeu o emprego e virou ajudante geral.

A mudança de curso na vida desses profissionais é o retrato do atual momento da economia brasileira. Com a piora no mercado de trabalho e a perda do poder de compra por causa do aumento da inflação, milhões de trabalhadores começaram a recorrer aos chamados bicos, empregos esporádicos, para tentar manter o padrão de vida ou apenas para conseguir pagar as despesas básicas.

Newsletter RD

Um termômetro do aumento da procura por esse tipo de trabalho são os dados da plataforma Bicos Online, que faz a intermediação entre o trabalhador e o contratante de serviços, como diarista, pintor, eletricista, pedreiro e motoristas. Dos 20 mil usuários cadastrados no site, 75% estão à procura de trabalho e 25% querem contratar. No início de 2015, esses porcentuais estavam em 60% e 40%, respectivamente.

“A crise aumentou a procura por bicos. A partir do segundo semestre, a distância entre a oferta e a demanda passou a crescer mês após mês”, afirma Marcos Botelho, sócio da Bicos Online, hoje disponível nas principais capitais do País e cidades da Região Metropolitana de São Paulo. De acordo com ele, entre os que estão em busca de um serviço, 70% estão desempregados.

Um outro levantamento feito pelo Instituto Data Popular também revela a popularização dos bicos. Segundo levantamento, a quantidade de trabalhadores que fazem bico aumentou de 41% em dezembro de 2013 para 69% em dezembro do ano passado. A pesquisa foi feita com 2 mil pessoas.

“O bico cresceu porque a inflação subiu muito, e o brasileiro, para não perder tanto o padrão de consumo, precisou trabalhar mais para comprar as mesmas coisas”, diz Renato Meirelles, presidente do Data Popular.

No ano passado, o brasileiro passou a lidar com uma combinação perversa: o desemprego subiu e inflação ultrapassou 10%. O Brasil perdeu 1,5 milhão de empregos com carteira de trabalho assinada, de acordo com dados do Cadastro Geral e Desempregados (Caged) – o resultado foi o pior da série histórica iniciada em 1992.

O tempo para se recolocar no mercado de trabalho também aumentou. Um levantamento recente feito pela Tendências Consultoria Integrada mostrou que o porcentual de desocupados há mais de sete meses subiu de 24,1%, em janeiro do ano passado, para 33,8% em novembro – o maior nível mensal desde 2006. A faixa que mais cresceu foi a que inclui desempregados entre 7 e 11 meses, cujo porcentual dobrou no período, de 7,3% para 14,2%.

Enquanto isso, o porcentual de trabalhadores que conseguia emprego no curto prazo, em até 30 dias, caiu de 29,6% para 20,2%. A faixa entre 31 dias e seis meses ficou estável, com 46% dos desocupados.

Dificuldade

Gabriela Lelis, de 24 anos, tem enfrentando as dificuldades do mercado de trabalho. Por um ano, ajudou o tio, que é autônomo. “Não era um emprego que tinha todo mês”, lembra a jovem, formada em sistemas de informação.

Neste ano, ela conseguiu uma vaga de três meses numa faculdade. Ela mora com os pais e a renda vai para ajudar nas despesas de casa. “Meu objetivo é encontrar um trabalho fixo. Por enquanto, é só temporário. Eles contrataram muita gente e estou fazendo o melhor para tentar ser efetivada.”

Já a publicitária Mônica Humphreys, de 39 anos, tem emprego fixo e recorreu aos bicos para complementar a renda. “Trabalho numa galeria de arte digital como diretora de marketing. Por interesse, fiz um curso de personal stylist e depois de organização pessoal, passei a trabalhar com isso para ter uma renda extra.” Além de uma conta no Instagram para divulgação do trabalho e do boca a boca, há quatro meses ela se cadastrou na Bicos Online. “Já fiz quatro trabalhos por lá.”

Serviço extra segura renda em meio à crise

Na falta de um emprego fixo, eles encontraram nos bicos uma forma de pagar as contas do dia a dia. Nem sempre o dinheiro é suficiente, mas ajuda a manter a dignidade do trabalhador enquanto não consegue uma ocupação mais estável. É o caso de Felipe Renan Gomes, de 23 anos. Com dificuldade para conseguir um novo emprego, o técnico de informática partiu para o mundo dos bicos.

“Faço tudo que está relacionado à informática. Se alguém tem dificuldade para se conectar a internet, por exemplo, vou até casa dele, resolvo o problema e recebo na hora.” A remuneração é bem menor comparada aos tempos de carteira assinada, mas dá para pagar as despesas do cotidiano.

Desempregado há quase quatro meses, ele divide o tempo entre a busca por um novo emprego e os trabalhos esporádicos, muitos deles conseguidos por intermédio do site Bicos Online. “Não estou desesperado, mas não tenho estabilidade financeira. Nunca sei quanto vou ganhar num mês.” Segundo ele, as vagas disponíveis hoje são muito ruins e pagam bem abaixo do salário anterior.

Bruna Ribeiro, de 25 anos, também tem enfrentado obstáculos para conseguir uma nova colocação. Ela cursava Relações Internacionais e era estagiária de licitações numa empresa farmacêutica. Quando engravidou, trancou a faculdade e saiu do estágio. “Optei por ficar um ano com meu filho, mas aí, quando tentei voltar ao mercado de trabalho, tive muita dificuldade.”

Ela conta que, desde outubro, vem mandando dezenas de currículos, e não apenas em sua área – também tenta vagas como recepcionista e assistente administrativa. “Consegui uma oportunidade em outra farmacêutica, mas logo a vaga foi congelada.”

Com as portas fechadas, Bruna se inspirou numa tia e decidiu fazer algo por conta própria. “Eu já estava ajudando a divulgar os trabalhos de crochê da minha tia, e acabei gostando. Foi aí que eu comprei uma máquina e decidi fazer meus próprios trabalhos.” Ela começou a colocar fotos de suas toalhas, panos de prato e centros de mesa na internet – e as encomendas vieram sem demora. “Não achei que fosse vender tanto. Esperava ganhar uns R$ 300, mas consegui mais de R$ 2 mil.”

A preocupação de Bruna, no entanto, é manter o ritmo de encomendas após as festas de fim de ano. “Resolvi diversificar e fiz um curso de pão de mel, pois é algo que vende o ano todo”, diz. Ela não pretende largar os bicos tão cedo. “Mesmo se conseguir emprego, vou manter as costuras e os pães de mel como um complemento na renda.”

A situação de Amanda Luiza Pindori de Souza, de 37 anos, é bem pior. De repente, a professora particular de inglês, mãe de duas crianças pequenas, se viu sem alunos e com o marido desempregado. “Numa crise, a primeira coisa que cortam são os gastos com educação”, afirma ela, que já trabalhou como secretária no passado.

Com a chegada dos filhos, decidiu reduzir a carga de trabalho e dar aulas particulares. Chegou a ter 12 alunos, o que lhe rendia uma boa remuneração mensal. Mas, além de uma mudança de cidade, veio a crise. Os alunos foram rareando. Primeiro caiu para três, depois para um e agora nenhum. Nesse ínterim, o marido, engenheiro de materiais, perdeu o emprego. Para conseguir algum dinheiro, os dois estão fazendo bico.

Ela vende lingerie, Tupperware e suplementos alimentares. O que ganha é mínimo. “Não sou uma boa vendedora. Se uma pessoa diz que não gosta de uma coisa, não insisto.” O marido conseguiu um bico numa empresa três vezes por semana e ganha menos da metade do que ganhava antes. “Vivemos da ajuda de parentes e amigos. Ganhamos uma cesta básica e temos contribuição para o aluguel.”

Sucesso

O que para muitas pessoas é um drama, para William Santos foi uma oportunidade. Ao ficar desempregado há um ano e meio, o eletricista começou a fazer bicos e a pegar tudo que aparecia pela frente. A renda mensal saltou de R$ 1,8 mil para R$ 5 mil. Comprou carro novo e agora guarda dinheiro para adquirir a casa própria. “Faço tudo que está relacionado a reformas. Se não é minha especialidade, chamo alguém que sabe fazer, mas não abro mão do trabalho.”

Receba notícias do ABC diariamente em seu telefone.
Envie a mensagem “receber” via WhatsApp para o número 11 99927-5496.

Compartilhar nas redes