Longa Força Maior questiona heroísmo

Tem havido um culto a Força Maior, desde que o longa – o disaster movie? – do sueco Ruben Östlund integrou a seleção da mostra Un Certain Regard, no Festival de Cannes do ano passado. O júri presidido pelo argentino Pablo Trapero outorgou-lhe seu Grande Prêmio, Força Maior ficou entre os cinco finalistas para o Globo de Ouro de filme estrangeiro. Indicado pela Suécia, foi também um dos nove finalistas, mas não ficou entre os cinco indicados para o prêmio da Academia. E agora estreia, com pompa e circunstância.

Hollywood contou muitas histórias de avalanches, mas o objetivo era sempre o exibicionismo técnico na recriação do desastre, ou então usar a força maior (da natureza) para destacar o heroísmo humano ou a necessidade de segurança face a situações-limite. Nada disso interessa muito a Östlund. Sua avalanche é bem filmada, mas o que lhe interessa é estabelecer um questionamento moral. Um massacre?

Newsletter RD

Na trama do filme, casal decide passar uns dias de férias nos Alpes para que o marido tenha algum tempo com os filhos, que anda negligenciando. Tudo segue nos conformes até a avalanche. Diante da montanha de neve que parece soterrá-la, e aos filhos, a mulher pede socorro ao marido. Ele foge. Depois, acuado, passa o filme tentando se justificar. E mostrar que não é um covarde. É doloroso. 

Para diretor, Força Maior reflete a família

Em Cannes, no ano passado, Ruben Östlund terminou virando a sensação da Mostra Un Certain Regard, mesmo que, no final, o júri presidido por Pablo Trapero tenha outorgado o prêmio da seção ao húngaro White Dog, de Kornel Mundruczó. Mas Östlund não foi esquecido – Força Maior ficou com o Grande Prêmio do júri. Desde o Q&A (Pergunta&Resposta) que se seguiu à apresentação para a imprensa, Östlund repetiu sempre que quis fazer da sua avalanche – o filme sobre as consequências de uma avalanche num resort dos Alpes – uma viagem de esqui (a ski trip) para o inferno.

Acertou em cheio. Força Maior atinge o espectador com a força verista de sua mise-en-scène e mais – com os detalhes que fazem dessa história (já que o diretor queria enviar o espectador para o inferno) uma trama de terror absoluto. O público que vê o trailer pode pensar que se trata de um novo Impossível – lembram-se do disaster movie de Jaume Coillet com Naomi Watts e Ewan McGregor? Casal passa férias com os filhos num resort marítimo, ocorre um tsunami, instala-se o inferno. Impossível é uma fantasia que segue os esforços conjugados do marido para localizar a família e do filho para proteger a mãe. Força Maior poderia ser o Impossível das avalanches. E bem possível, por sinal. Östlund fez outra coisa. O filme dele remete a Lord Jim, o romance clássico de Joseph Conrad, do qual Richard Brooks tirou um filme notável – com Peter OToole -, nos anos 1960. Em Conrad, como no Brooks, o sugestionável Jim é um marujo a bordo de uma embarcação que carrega peregrinos, o Patna. Diante da iminência de naufrágio, ele se apavora, e foge. Vira um pária, desesperado por uma segunda chance para provar a si mesmo que não é um covarde. No filme de Östlund, diante da avalanche que ela sente que poderá soterrá-la, e aos filhos, a mulher grita pelo marido. Ele foge. Depois, passado o alarme falso, o marido volta, e tenta convencê-la de que não a abandonou.

Se a situação do casal já era complicada – a ideia era passar um dias no resort para que o pai omisso ficasse mais tempo com os filhos -, após o incidente as coisas pioram mais ainda. A mulher conta aos amigos, cria-se uma discussão. Ele é massacrado moralmente, tenta provar a si mesmo que não é um covarde. O diretor Östlund gosta dessas situações-limite. Ele já havia sido selecionado em Cannes para as seções Un Certain Regard e Quinzena dos Realizadores. Tanto Involuntary quanto Play subvertem cânones. O desafio do primeiro, por meio da história de uma professora e seus alunos, era desenvolver cenas, filmadas em plano único para testar as reações dos atores não profissionais. O segundo é sobre um grupo de garotos negros que rouba garotos brancos num jogo de afirmação.

Filho de uma professora, Östlund conta que a mãe sempre foi dada a fazer experiências de comportamento com os filhos. Ele próprio é muito ligado em pesquisas, e para Força Maior buscou apoiar-se em dados reais para criar a verossimilhança. Duas pesquisas interessaram-no, particularmente. Uma sobre casais que sobreviveram a sequestros aéreos e outra sobre casais em desastres marítimos. Na primeira, os casamentos implodiam tão logo os casais voltavam às condições, digamos, normais. Na segunda, os homens, nem que tenha sido por um momento, fragilizaram-se mais que as mulheres. E depois veio a cobrança – Eu esperava que você tivesse feito isso, ou aquilo. Como disse Östlund, nenhum casamento resiste a esse tipo de pressão – nenhuma pessoa.

Para o diretor, Força Maior não é sobre avalanche, mas sobre família. Que tipo de família queremos? O que fazemos com elas, ou por ela? Tomas, o pai, termina por se distanciar da família dando duro como seu provedor. No fundo, preocupa-se mais consigo mesmo. Como diz Östlund, “o cinema gosta de personagens que perdem a dignidade porque é interessante mostrar o esforço de recuperação”. Lord Jim é sobre isso. “Nos meus filmes, é um fato. A dignidade perdida não pode mais ser recuperada.”

Receba notícias do ABC diariamente em seu telefone.
Envie a mensagem “receber” via WhatsApp para o número 11 99927-5496.

Compartilhar nas redes